A Comissão Europeia e o Mercosul esperavam confirmar nesta semana a assinatura do acordo comercial entre os blocos, mas a França, mais uma vez, resiste à adoção do tratado. No país, o pacto transformou-se no bode expiatório de um modelo agrícola em sucessivas crises.
A mais recente crise é sanitária: uma dermatose nodular contagiosa bovina ameaça o rebanho francês, obrigando o governo a promover abates em massa para conter a epidemia. Ao mesmo tempo, a França combate a gripe aviária, que ameaça a região de Landes, principal polo produtor de patos para o foie gras.
Estes problemas somam-se a dificuldades em setores como o trigo e os vinhos, afetados pela concorrência internacional, mudanças climáticas e oscilações do comércio global. Projeções indicam que, em 2025, a agricultura francesa poderá registar o seu primeiro déficit comercial em 50 anos, importando mais do que exporta.
“Foi conjuntural, mas soma-se a recuos em relação a outros países europeus, como no setor de frutas e legumes. Temos um problema de conjuntura e outro de competitividade”, explica Jean-Christophe Bureau, professor de Economia da AgroParisTech.
O risco de cortes na Política Agrícola Comum (PAC) aumenta a preocupação. O próximo orçamento (2028-2034) poderá cair até 20%, com impacto maior na França, principal beneficiária do programa de subsídios. Todos os anos, os agricultores franceses recebem cerca de 9 mil milhões de euros de ajuda, o que representa dois terços da renda do setor.
Os números revelam um déficit de competitividade. A França lidera a produção agrícola na Europa, mas caiu do segundo para o sexto lugar entre os maiores exportadores globais. Desde 2015, importa mais produtos agrícolas do que exporta para os seus vizinhos europeus. Hoje, metade das frutas e legumes consumidos no país vem do exterior.
“Em alguns casos, temos diferença de custo da mão de obra, que é menor na Espanha ou na Alemanha”, aponta Bureau. “Mas também podemos citar as nossas deficiências em pesquisa e desenvolvimento e até de formação.”
O êxodo rural é outra preocupação. A renda média dos agricultores estagnou nos últimos 20 anos, e o aumento das dificuldades afasta os mais jovens do campo. Alguns sindicatos criticam ainda um suposto excesso de regulamentações sanitárias e ambientais no bloco europeu.
Neste cenário, a maioria dos agricultores franceses vê o acordo com o Mercosul como uma ameaça, por considerar que os produtores da América Latina seguem regras ambientais menos rigorosas. A França obteve garantias de salvaguardas para os setores mais ameaçados, mas, para os produtores, as barreiras são insuficientes.
“Segundo os nossos cálculos, o acordo com o Mercosul não tem impactos grandes, mas é um acordo que se soma a outros. Para alguns setores, como a carne bovina, as aves e o mel, torna-se desfavorável”, pondera o professor. “Há uma insatisfação generalizada. Em um ano de renda muito baixa, o acordo com o Mercosul vira a gota d’água.”
Recentemente, o Parlamento Europeu aprovou medidas de proteção e criou um mecanismo para monitorar o impacto do acordo em produtos sensíveis, abrindo portas para a aplicação de tarifas em caso de desestabilização do mercado.
Apesar das salvaguardas, a França deve manter a oposição, tendo pedido o adiamento da assinatura. A atenção volta-se agora para a Itália, cuja posição, aliada à da França, Polónia e Hungria, poderia formar uma maioria qualificada suficiente para bloquear o pacto.